Impunidade, de H. G. Cancela


Ficha técnica
TítuloImpunidade
Autor – H. G. Cancela
Editora – Relógio D’Água
Páginas – 222
Datas de leitura – de 23 a 29 de setembro de 2017

Opinião
Uma semana se passou desde que terminei esta leitura e tenho plena consciência de que, mesmo tendo-se passado esse tempo, não sou ainda capaz de pôr em escrito o tamanho da estupefação, da incredulidade e da vontade de esmurrar algo, alguém (o autor, as personagens?...) que senti e ainda sinto.
Esta não é de maneira alguma uma opinião fácil de escrever. Como não o foi ler a primeira obra deste autor que caiu na minha estante. Não sei como colocar em palavras tudo o que li, tudo o que senti, o aturdimento que me acompanhou do início ao fim, as vezes que deparei comigo mesma encolhida, de punhos cerrados, a morder esses punhos cerrados, de respiração suspensa e com uma vontade desmedida de abanar a todos, de sacudi-los para que despertassem, de esmurrar violentamente aquele pai, aquela mãe, de gritar-lhes todo o tipo de insultos e de arrebatar-lhes as duas crianças e enroscá-las no meu colo até que elas pudessem sentir, pela primeira vez, o que é ser acarinhado, amado, o que é estar vivo.
Sabia que nunca sairia igual desta leitura, como nunca saio a mesma de qualquer leitura. Mas esta é incomportavelmente mais dura, mais crua, mais violenta do que qualquer outra. É claro que, sendo eu uma leitora obcecada pela Segunda Grande Guerra, estou familiarizada com a dor, a tortura, a violência no seu estado mais puro, porém confrontar-me com a indiferença, o alheamento e o desapego que aqueles pais demonstram face ao abandono a que votaram os seus próprios filhos foi excruciante. E se a isso se acrescentar a brutalidade que usam entre si, a relação física de pendor animalesco que os faz buscarem-se um ao outro, o dia após dia de duas crianças que apenas contam consigo mesmas para sobreviver, então atinge-se um sofrimento insuportável. Inclusive para os leitores mais habituados à dor e à violência nua e crua.
Se fizermos uma pesquisa online, constatamos que esta obra de Cancela e já agora o próprio autor não atingem grandes níveis de popularidade. Na rede social Goodreads poucos foram os que partilharam as suas impressões sobre Impunidade. Todavia, aqueles que o fizeram estão de acordo comigo – esta é uma obra com contornos de perfeição, recheada de momentos no mínimo perturbadores, de passagens nas quais o narrador filosofa sobre a natureza humana, o que tem de mais primário, o quanto os nossos instintos mais básicos tingem as nossas ações e de personagens que odiamos com todas as nossas forças, que nos revoltam o estômago, mas que talvez apenas estejam a viver a vida tal como lhes ensinaram a viver.
Por ser chocante, por ser opressivo como o calor sufocante de Sevilha, por ser terrivelmente perturbador e agoniante não recomendo Impunidade a quem não aguenta os referidos graus de dureza e violência e muito menos a quem é progenitor e não consegue ser espetador de cenários de abandono voluntário, de desamor, de indiferença perante o que possa necessitar um ser que nasceu porque um homem e uma mulher fornicaram sem pensar nas consequências. Contudo, e antiteticamente, imploro a que conheçam H. G. Cancela, que leiam o que ele publicou até agora, pois um autor que escreve uma obra como Impunidade tem que ser conhecido, tem que ser lido, tem que ganhar o seu lugar muito merecido no panorama da literatura nacional.
Finalizo dizendo o que se depreende do que referi até agora – esta foi uma das leituras de 2017, uma das descobertas do ano. Como tal, atribuo-lhe a nota máxima, mesmo que isso me agonie e me revolva as entranhas…

NOTA – 10/10


Sinopse
Um homem caminha primeiro a pé, tacteando no escuro, depois de automóvel, conduz toda a noite, dorme na pressa de um hotel, retoma a viagem primeiro ainda em terras portuguesas, depois em Espanha.
Em Sevilha sobe ao último andar de um prédio. Tem a chave da porta, a casa está desarrumada e nela se encontram duas crianças adormecidas quase entre sinais de abandono. «Aproximei-me da cama maior. O rapaz tinha apenas as cuecas vestidas. Magro, as pernas esguias, o cabelo comprido. Ouvia-se a respiração. Rápida, regular, entrecortada por pausas de onde emergia com uma aspiração sufocada. Da outra cama, não se ouvia nada. A menina estava despida, com o cabelo espalhado pelo rosto e as pernas cobertas com a ponta do lençol. Apoiei-me nas grades, debrucei-me e afastei-lhe o cabelo. Não se mexeu. Respirava devagar, com os lábios entreabertos e um quase insensível movimento do peito. Parecia fria, apesar do calor, o corpo contraído, a cabeça colada aos joelhos. Tinha os lençóis húmidos em redor das coxas. Na penumbra, a sua pele esbatia-se contra o tecido branco.» 
Este é o início de uma história inesperada, dura, com o «esplendor das coisas ameaçadas».

6 comentários:

  1. Olá Ana,
    Já conhecia este livro. Mas não sabia que era assim tão bom. venha de lá mais livro para a lista ;)
    É tão bom quando saímos de uma leitura que nos enche o coração.
    Beijinhos e boas leituras

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    1. Olá, Isa! É realmente muito bom, mas é preciso ter estômago para lê-lo, por tudo! Por isso, prepara-te!
      beijinhos e leituras muito saborosas!

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  2. Senti praticamente a mesma revolta e ansiedade que tu ao ler este livro, dando por vezes por mim de dentes cerrados, tal era a raiva que sentia pela apatia e indiferença desta gente. Até que comecei a notar um padrão irritante na escrita do autor que se sobrepôs à minha entrega à obra. O H.G. Cancela só pode ter um grave problema com as mulheres! Sempre que aparece uma, é sexualmente objectificada. Antes de contar o que ela faz ou diz (e elas praticamente não têm voz, a menina até problemas de fala tem), descreve o que a roupa deixa ver, o que não deixa ver, o que poderá estar por baixo dela, e nem a desgraçada da miúda escapa. Podia dizer-se que é a perspetiva do narrador e não do autor, mas não me parece, pois todas as personagens masculinas têm jogos de poder e submissão com as mulheres, as quais são apelidadas de p...s, de cadelas, de promíscuas, e elas são controladas, dominadas, devolvidas... Como se não bastasse, ainda há o preconceito: o mau da fita é... árabe, o homem poderoso e controlador é... judeu. A sério?! Eu há muito que deixei de ler de forma crítica depois de muitos anos a dissecar obras, avaliando agora apenas o prazer, o interesse, o choque, a melancolia que me suscitam, mas este livro é demasiado problemático para eu deixar essas coisas passar em branco e deixou-me mesmo muito zangada. Nota-se, não é? :-) Desculpa o desabafo literário...
    Paula

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    1. Estás completamente desculpada. Abriste-me os olhos para muitas mais leituras, para muitas mais perspetivas a ter em conta nesta obra. Não consigo não dar-te razão, não sei se é problema com as mulheres, se é outra coisa, mas que os paradigmas que mencionas fazem todo o sentido, ai isso fazem! E tenho que confessar, deves soltar mais vezes esse lado zangado, traz muita elucidação! Obrigada! Mesmo!

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  3. Olá Ana
    Não conhecia este livro, mas depois desta opinião vai ser leitura obrigatória.
    É tão bom quando um livro permanece connosco dias depois de o termos terminado!
    Beijinhos e boas leituras

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    1. Olá, Sara!
      Espero que te deixe tão atordoada como me deixou a mim! Será muito bom sinal!
      Beijinhos e leituras muito saborosas!

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