Os transparentes, de Ondjaki


Ficha técnica
TítuloOs transparentes
Autor – Ondjaki
Editora – Editorial Caminho
Páginas – 432
Datas de leitura – de 22 a 29 de julho de 2017


Opinião
Uma visão límpida, transparente de Angola e dos angolanos. Uma janela sem filtros, com uma localização privilegiada, que permite ao leitor passar uma temporada no centro de Luanda, convivendo com os seus habitantes, e absorver o dia-a-dia da capital mais cara do mundo.
Ondjaki voltou a surpreender-me. Depois de me ter embalado com uma mistura mágica e doce de palavras e imagens em Uma escuridão bonita, o autor angolano amarga o discurso, pincela-o com doses de realidade e traz-nos uma narrativa carregada, sofrida, que descreve, sem panos quentes, como é a sociedade angolana que povoa a capital do país. Desde um simples carteiro que preenche infinitas folhas papel de vinte e cinco linhas para que lhe atribuam uma motorizada que lhe facilite as deslocações e entregas, passando por um jovem originário do Benga, uma província vizinha de Luanda, que vende as conchas que apanha no mar para poder sobreviver, até a Odonato, um pai de família que foi despedido, ou melhor, que foi impedido de fazer o seu trabalho de funcionário público apenas porque não compactuava com esquemas e, como bem se sabe, “… em Luanda, quem não tem jeito para esquemas…” acaba sem dinheiro, passando fome e não tendo o que comer.
Estas são apenas três personagens que convivem diariamente nos corredores, escadas e apartamentos de um prédio de cujas paredes corre ininterruptamente água doce, esse líquido preciosíssimo e que escasseia nas outras casas. Todos os habitantes deste lugar com propriedades encantatórias têm as suas particularidades, as suas características únicas, mas quase funcionam como uma personagem coletiva se pensarmos e as associarmos ao retrato social do angolano típico ou estereotipado – aquele que adora comer bem e beber ainda melhor, que se desenrasca habilmente de todos os “makas” com que se depara na vida, que sente o sangue fervilhar com o belo traseiro de uma mulher e que, acima de tudo, é um ser solidário, que abre as portas de sua casa para acudir quem esteja necessitado de ajuda, nem que para isso tenha de tirar alimento da sua boca.
Esta vasta galeria de personagens não fica completa sem aquelas que retratam o outro lado de Luanda e consequentemente de Angola. Personagens que pertencem ao governo, personagens que dirigem negócios poderosíssimos e personagens que, não tendo uma profissão específica, se dedicam a qualquer “trafulhice” que lhes dê lucro fácil. É ao ler passagens que descrevem a megalomania que tomou de assalto os mais altos representantes do governo após saberem que o subsolo da capital tem jazidas de petróleo, fragmentos que põem a nu a corrupção que assola todos os escalões da vida pública angolana ou partes que se relacionam com negócios como a criação da IgrejaDaOvelhinhaSagrada, cuja saudação não é “amém”, mas sim “amééé” que o leitor assimila a principal mensagem da obra – estamos perante um retrato cru e fiel de uma sociedade, de um país que possui tudo para ser um dos países mais prósperos do mundo, mas que se afundou num círculo vicioso de materialismo, hipocrisia e principalmente corrupção.
Ondjaki traz-nos então um livro protagonizado pela sua Luanda que por sua vez está representada pelos luandenses. Mas este livro não se restringe a esse retrato social. É isso e muito mais. É um louvor à beleza do português de Angola, à riqueza do estilo do autor, um estilo carregado de poesia, de sentimento e muito encantamento. Um estilo que nesta obra me faz fechar os olhos e recordar o magistral José Saramago. Um estilo que nos abre o peito simultaneamente à ironia, ao sarcasmo, à crueza e à doçura de uma primeira paixão, à cumplicidade de um casal que conhece o âmago um do outro e à tristeza e conformismo de um homem que somente “queria comer da mão do meu governo, mas não como os governantes comem, queria comer com o fruto do meu trabalho, da minha profissão”.
Gostei muito. Quero mais de Ondjaki. E como quero mais, brevemente lerei contos seus em Os da minha rua que virá da biblioteca da terrinha passar uns dias cá em casa.

NOTA – 09/10

Sinopse
Ondjaki, o escritor angolano já bem conhecido do público por obras como o assobiador (2002), quantas madrugadas tem a noite (2004), Os da minha rua (2007), AvóDezanove e o segredo do soviético (2008), entre outros títulos, sempre colocou Angola, e em particular Luanda, de onde é natural, no centro da sua escrita. 
Com o presente romance, de novo aparece Luanda - a Luanda atual do pós-guerra, das especificidades do seu regime democrático, do «progresso», dos grandes negócios, do «desenrasca» - como pano de fundo de uma história que é um prodígio da imaginação e um retrato social de uma riqueza surpreendente. 
Combinando com rara mestria os registos lírico, humorístico e sarcástico, os transparentes dá vida a uma vasta galeria de personagens onde encontramos todos os grupos sociais, intercalando magníficos diálogos com sugestivas descrições da cidade degradada e moderna.

4 comentários:

  1. Olá Ana,
    Ainda só li um livro do Ondjaki e adorei. Li "Os da minha rua". Gostei imenso. Já quero ler este já!!
    Beijinhos e boas leituras

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    1. E eu, Isa, quero muito ler "Os da minha rua"!!!
      Depois trocamos opiniões!
      Beijinhos e leituras muito saborosas!

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  2. Como na biblioteca local só tinham "Bom dia, Camaradas", tive de me estrear nos livros do Ondjaki com ele. E não foi a opção certa, porque o narrador é um adolescente, logo o discurso é coloquial, o que para mim equivale a uma escrita pobre. Realmente estou a ficar uma velha jarreta que mais facilmente se identifica com a vivência e a amargura de um velhote do que com a inocência de um jovem! Tenho de voltar a tentar com os dois que leste, para ver se é defeito ou feitio.;-)
    Paula

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    1. Mais uma vez fizeste dar uma risada - estamos mesmo a ficar velhotas jarretas e muito e muito picuinhas com as nossas leituras! É o peso da experiência, que nos faz torcer o nariz a tudo que não tenha muita qualidade!
      Acho que se leres "Os transparentes" vais encontrar uma escrita madura e nada contagiada pelo coloquialismo :) Arrisca!
      Beijinhos!

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